Blog da Chris

Diabruras do presidente Ricochete

(Foto: publicação)

Por Paulo Afonso Linhares

       Por décadas a fio, a criançada tupiniquim se encantava com um desenho animado da Hanna-Barbera (1964), “Ricochet Rabbit & Droop-a-Long” que, na língua de Graciliano, chamou-se “Coelho Ricochete & Blau Blau”. O Coelho Ricochete é um habilidoso xerife que faz coisas inimagináveis com armas de fogo e sempre derrota “os vagabundo” (sic, com esse erro de concordância, próprio da fala do presidente Bolsonaro…) do velho Oeste (nosso? Não, o norte-americano) e os confina em remotas “jails”, aquelas toscas prisões quase sempre vulneráveis a fugas puxadas a bananas de dinamite. O fiel escudeiro de Ricochete é um coiote idiota, do tipo “devagar quase parando”, chamado Blau Blau, porém, representa a voz da razão que é antípoda da emoção do chefe e repete, para o público infanto-juvenil, a saga cervanteana do cavaleiro Don Quijote de la Mancha e seu fiel escudeiro Sancho Panza.

       Estas lambanças juvenis se encaixam numa reflexão, posto que perfunctória, da realidade brasileira nos nove meses iniciais do governo Bolsonaro, levando-se em consideração, sobretudo, as falas performáticas do próprio presidente através de redes sociais ou por meio de entrevistas não programadas que concede a ‘focas’ acampados na saída do Palácio do Alvorada. Esses improvisos presidenciais, verdadeiros tiroteios para todos os lados, têm causado estragos políticos enormes, interna e externamente. Usando uma linguagem bem senso comum e raciocínios tacanhos, Bolsonaro discorre sobre assuntos que, pela liturgia do cargo importante que ocupa, nem deveria fazê-lo.

       No mundo civilizado, os tais “negócios de Estado” são tratados segundo modelos (talvez “protocolos” até seja o termo mais adequado) estabelecidos ao longo de muitos séculos de vivência em cortes palacianas, sedes de governo e se repetem, com mudanças inevitáveis e adaptações às peculiaridades de cada contexto histórico, em todos os países que têm estruturas de poder organizadas. Em suma, os Estados e seus líderes devem pautar-se por regras gerais de convívio social e da boa educação, que demarcam o que podem ou não fazer, como devem proceder diante de certas circunstâncias etc.  Alguém que exerça relevante cargo em um país (rei, presidente ou primeiro-ministro) não deve se imiscuir em questões da política interna de outro país ou destratar pessoalmente liderança política de país estrangeiro com o qual mantém relações diplomáticas.

       Já tivemos alguns presidentes estabanados, a exemplo de Jânio Quadros, que governou o Brasil após brilhante eleição ocorrida em 1960. Certa vez, quando interpelado por uma jornalista a respeito de sua opinião sobre os homossexuais e foi chamado de “você”, Jânio respondeu na bucha: “Intimidade gera aborrecimentos ou filhos. Como não quero aborrecimentos com a senhora, e muito menos filhos, trate-me por Senhor!” Sobre a sua renúncia à presidência da República, Jânio Quadros fez várias declarações desconcertantes, em 25 de agosto de 1961: “A conspiração está em marcha, mas vergar, eu não vergo!” (durante o café da manhã); “Comunico aos senhores que renuncio, hoje, à Presidência da República” (em reunião com os chefes da Casa Civil e da Casa Militar); “Ajustem o novo Brasil às exigências do Brasil novo. Com esse Congresso, eu não posso governar” (com os três ministros militares); “[Brasília] Cidade amaldiçoada, espero nunca mais vê-la” (quando ia embarcar para São Paulo, após a renúncia).    

No ciclo de governos militares (1964-1985), contabilize-se apenas a figura desajeitada do general João Batista Figueiredo na presidência da República 1979-1985), que, todavia, disse apenas poucas frase desastradas que ganharam repercussão na imprensa brasileira. Registrou o jornal Folha de São Paulo (edição de 17/02/1995): “Em 9 de outubro de 1979, o então presidente João Baptista Figueiredo foi surpreendido por 90 alunos de escolas das cidades-satélites de Brasília, que tinham ido conhecer o Planalto. Quando a professora se afastou um pouco do grupo que cercava Figueiredo, um menino de 10 anos perguntou: ‘Presidente, como o sr. se sentiria se fosse criança e seu pai ganhasse salário mínimo?’ Figueiredo respondeu: “Eu dava um tiro no coco.” Na época, o mínimo em São Paulo era de Cr$ 2.268,00 (US$ 76). Em seguida, Figueiredo tentou consertar: “Eu trabalharia para ajudar meu pai.” Então foi a vez de uma menina de 9 anos: “Presidente, por que a panela do pobre está sempre cheia de ilusão?” E Figueiredo: “Eu pretendo melhorar isso baixando o custo de vida”. Noutro momento, segundo registro em livro de Eduardo Bueno (Ed. Ática, ISBN 8508082134, 9788508082131) disse o então presidente João Figueiredo num infeliz desabafo: “Prefiro cheiro de cavalo do que cheiro de povo. Não posso obrigar o povo a gostar de mim. Sou o que sou, não vou mudar para que o povo goste.” Último presidente da ditadura miliar, Figueiredo disse que “quem for contra a abertura, eu prendo e arrebento” e, quando deixou o poder, declarou melancólico: “Peço ao povo que me esqueça.”

       O presidente Bolsonaro, em pouco mais de oito meses de presidência da República, bateu todos os recordes de múltiplas quebras de muitos dos protocolos que conformam a liturgia do poder, seja no âmbito interno seja no plano internacional. Ele produz em um dia mais estultices que Jânio Quadros e o general Figueiredo produziram em todo o tempo que foram inquilinos do Palácio da Alvorada. 

Em resumo, Bolsonaro, filhos e agregados, já destrataram muitas instituições e pessoas do seu país, inclusive, importantes aliados políticos e colaboradores do governo. E mais: achando pouco, agem como irrefreável bulldozer a pisotear instituições e autoridades estrangeiras, tarefa, aliás, a que se tem dedicado pessoalmente Jair Bolsonaro ao dizer coisas grosseiras, desrespeitosas à dignidade das pessoas, quase sempre gratuitamente agressivas e não menos inimagináveis; certamente acredita que o fato de ter ‘capturado’ a presidência da República lhe dá a condição de dizer o que vem às ventas. E diz, doa a quem doer, lasque a quem possa lascar, em “França, Europa ou Bahia”, como se dizia antigamente.

       Peitou a Alemanha e sua primeira-ministra; desancou a Noruega; meteu a chibata na França, fez chacota do presidente Macron e destratou a primeira-dama francesa; na defesa (intromissão indevida e errônea) do argentino Maurício Macri, Bolsonaro tem batido com força na dupla Alberto Fernández/Cristina Kirchner, candidatos à presidência e a vice da Argentina na eleição de outubro. E se as urnas confirmarem a grande derrota que Macri teve nas eleições “Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias” (cuja sigla é significativamente PASO, o mesmo que “passo” em português), realizadas em 11 de agosto de 2019, quando recebeu apenas 31,79% do votos contra 47,78% dados a Fernández, numa diferença de quase 16 pontos percentuais? Pesquisas de opinião recentemente publicadas apontam um crescimento de Fernández para 51,5% contra 34, 9% de Macri.

Um provável vitória de Fernández/Kirchner certamente criará um ambiente péssimo no Mercosul e, particularmente, com o maior parceiro comercial e vizinho do Brasil, que é a Argentina. Rivalidade boba, só no futebol, até pouco tempo. Agora, literalmente Bolsonaro se meteu de modo indevido numa briga do vizinho e isso terá consequências nefastas no campo das relações diplomáticas e econômicas dos dois países.

O mais constrangedor é perceber que Bolsonaro não sabe separar o que se refere à sua pessoa e o que é Estado brasileiro. Veja-se, por exemplo, as agressões gratuitas e despropositadas que dirigiu recentemente contra a Srª Michelle Bachelet, Alta-Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos e ex-presidente do Chile, acusada de defender “direitos humanos de vagabundos” porque revelou, em relatório do órgão que dirige, estatísticas sobre o crescimento dos assassinatos praticados pelas polícias do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nem o nome da dama Bolsonaro soube pronunciar: chamou-a de Michelle “Baquelê”, como se pronuncia o “ch” em italiano, que tem som de “qu”, todavia, o sobrenome Bachelet é de origem francesa, onde o “ch” equivale ao “ch” em português (de “chinês”, “chinelo”, “cachorro” etc).

Bolsonaro achou pouco esse escorrego e deu uma desastrada declaração sobre o pai da ex-presidente, brigadeiro Alberto Bachelet, assassinado no começo da ditadura chilena implantada pelo general Augusto Pinochet, em 1973, acusando-o e à própria Bachelet de serem “comunistas”, algo absolutamente inverídico, bizarro e desumano, segundo publicação da revista Época (edição de 08/09/2019), Bolsonaro afirmou: “o ‘Chile não virou Cuba’ nos anos 70 porque o general Augusto Ramón Pinochet ‘derrotou a esquerda em 1973, entre esses comunistas seu pai, militar na época’. Pano rápido e não menos vexatório.

 Esse esbirro tipicamente bolsonariano, estarreceu a opinião pública mundial e, em particular, agrediu o povo chileno. Mesmo o atual presidente daquele país, Sebastián Piñera, adversário político da Srª Bachelet e próximo de Bolsonaro em razão do credo direitista que ambos professariam, dizendo-se comprometido com a democracia e os direitos humanos de todas as épocas e em todas as circunstâncias, ademais de ser contra as ditaduras do passado e do presente, concluiu que “não compartilha absolutamente da alusão feita pelo presidente Bolsonaro em relação à ex-presidente do Chile e, especialmente, em um tema tão doloroso como a morte de seu pai”.

Depois do presidente Piñera, os partidos políticos e lideranças de todas as extrações político-ideológicas entenderam a fala de Bolsonaro como uma enorme afronta ao povo e ao Estado chileno, indignação traduzida nas palavras do senador José Miguel Insulza, que também foi secretário-geral da OEA, quando declarou que o presidente brasileiro “demonstrou uma capacidade impressionante para insultar pessoas” e que é uma “vergonha para a região”.

E seguirá o presidente Ricochete com seus insultos, a torto e a direito. Suas próximas vítimas poderão ser o papa Francisco, o Dalai Lama, o imperador do Japão, o primeiro-ministro do Canadá, o rei da Espanha, o senador Pepe Mujica ou o presidente da Itália. É só sair da convalescença de mais uma cirurgia, Bolsonaro e sua metralhadora giratória entrarão em modo operação. E haja estrago. Lastimavelmente, Bolsonaro é Ricochete sem as ponderações de Blau Blau. Bem que, num dado momento, o vice-presidente Mourão quis fazer esse papel, mas, levou grosso chumbo verbal dos filhos do capitão, Carluxo à frente, bem como do próprio Bolsonaro: sabiamente, Mourão “puxou o carro” e ficou no modo de espera, estilo Marco Maciel quando vice de FHC (1995-2003). O presidente Ricochete continuará solto na buraqueira do Planalto Central. Bing, bing, bing!

Paulo Linhares é professor da UERN e advogado. 

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