Blog da Chris

Inimigos íntimos

(Foto: publicação)

Por Paulo Afonso Linhares

A avassaladora e inesperada performance de Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2018 deu inicialmente a impressão de que se formara um novo consenso à direita, estribado na formidável montanha de 57.797.847 votos garantidores de vigorosa legitimidade. Obviamente que uma série de manobras bem sucedidas que envolvia uma aliança composta pela plutocracia financeiro-industrial, pelo baronato da grande imprensa e por setores da grande máquina estatal do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal, além de bem articuladas bancadas temáticas conservadoras do Congresso Nacional, as bancadas BBB (os três “b”: bancadas da Bíblia, do Boi e da Bala), poderia derrotar   a “organização criminosa petista” que governava o Brasil desde o ano de 2003.

Para conseguir esse desiderato, era imprescindível interromper o governo legal e legitimado pelo voto da então presidente da República Dilma Rousseff. Uma extenso e bem montado processo de impedimento foi iniciado. Embora sem a configuração dos requisitos constitucionais para o impeachment da então inquilina do Palácio do Planalto, elencado no artigo 85 da Carta de 1988, todas as etapas foram cumpridas e que redundaram, à final, na deposição da mandatária petista. Uma bem urdida manobra judiciaria-parlamentar consumou inequívoca e nova forma de golpe de Estado: tudo formalmente nos marcos institucionais vigentes, sem um tiro ou uma gota de sangue derramado. Foi como tomar um vermelhíssimo pirulito de desalentada criança.

As próprias vítimas, os petistas, ingenuamente findaram como avalistas da patranha que os apeou do poder federal, ao acreditar que seria possível lutar e vencer nos marcos jurídicos-processuais da institucionalidade. Satanizados pela Globo e seus aliados, os tais “lulopetistas” se transformaram na quintessência da corrupção.  Não importava os corruptos do PMDB, do governo Temer, do PSDB, do PP ou do PTB. O PT, passou a ser o culpado por todos os desmandos e desacertos da República. Mais ou menos como ocorre naqueles romances policiais em que o mordomo é sempre o culpado pelo crime: o PT, mordomo do governo e jamais do poder, passou a ser tido como vilão de todos os malfeitos deste país.

Na sadia vivência republicana, o dever dos homens públicos não é apenas não dilapidar, mas, também, impedir que outros dilapidem o dinheiro do povo, desde os tempos de Marcus Tullius Cicero que, a propósito, ensinava: “O orçamento nacional deve ser equilibrado. As dívidas devem ser reduzidas, a arrogância das autoridades deve ser moderada e controlada. Os pagamentos a governos estrangeiros devem ser reduzidos se a nação não quiser ir à falência. As pessoas devem, novamente, aprender a trabalhar, em vez de viver por conta pública.”

Por isto é que, decerto, o grande pecado do PT (e de seu líder mais eminente, o ex-presidente Lula), tenha sido as alianças espúrias que fez na busca da tão propalada “governabilidade” e que resultou na conivência com gravíssimos e vultosos casos de corrupção.  Aliás, o paradoxo é que Lula ‘coma cadeia’ em razão de uma reles apartamento e um acanhado sítio que, sabidamente, não lhe pertencem e que, juntos, valem menos de dois milhões de reais. 

Tanto que, na recente prisão do ex-presidente Michel Temer, decretada pelo juiz federal Marcelo Bretas, revelou-se que ele e o seu escudeiro Moreira Franco, o famoso “Gato Angorá”, teriam recebido cerca de um bilhão e oitocentos milhões “em tenebrosas transações”, como diz a canção de Chico Buarque, enquanto “A nossa pátria mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída”. Traída mesmo, por que manobrava os cordéis dos marionetes da política brasileira. Claro, a prisão preventiva de ambos é desnecessária e um absurdo do ponto de vista do sistema de garantias desenhado na Constituição da República, mas, aí já é uma outra história. Voltaremos ao tema.

Doutra parte, constata-se que, nestes tempos de agora, a luta política se transferiu para o terreno movediço das bolorentas pendengas judiciárias enfeixadas na velha fórmula do interesse supremo do Estado que tantas vidas imolou, alhures e aqui, no promíscuo altar da política: o apóstolo Pedro, a guerreira francesa Jeanne D’Arc, o líder escocês William (Brave Heart) Wallace, o filósofo Giordano Bruno, o nosso Tiradentes, o Padre Miguelinho, o poeta Federico García Lorca, a combatente Olga Benário Prestes, o casal Rosenberg e o cantor chileno Victor Jara, entre tantos. Em nome de Deus, da pátria ou da lei, sempre a aflição de mortes cruéis e desnecessárias.

O primado da lei, do Estado, do interesse coletivo, da prevalência do público sobre o privado, das instituições implacáveis e impessoais. E por trás desse biombos salpicados de sangue e lágrimas, grassam mendazes interesses patrimoniais, políticos e ideológicos.

Entretanto, como se dizia antigamente, “o castigo vem a cavalo”. Hoje, é mais correto dizer que o castigo vem a foguete, redes sociais ou grandes aparatos de comunicação. Aliás, o presidente Bolsonaro não apenas é assíduo frequentador das redes sociais, em especial do Twitter, como a partir do besteirol que destila nessas plataformas, paradoxalmente se transformou, ao lado de seus filhos e de alguns de seus ministros, no maior adversário de seu próprio governo.

 A cada semana, temas polêmicos vêm à tona e deflagram novas crises. Bolsonaro, seus meninos e ministros, já são suficientes para manter o clima de guerra no seio do governo; eles fazem o furdunço todo, enquanto a oposição apenas (estarrecida!) observa. Em suma, o governo Bolsonaro não precisa de adversários ou opositores. Só a família do presidente Bolsonaro, além dele próprio, já gera bizarras e absurdas crises, isto sem falar nos grupos que dividem o poder a trocar cotoveladas.

Enfim, esse governo alberga elementos díspares que, até agora, têm impedido uma atuação política em bases monolíticas.  É um governo marcado pela antinomia: o paradoxo de ser, a um só tempo, situação e oposição. Algo bem parecido até com aqueles versos da canção “Contrários”, do Padre Fábio de Melo: “Que o verso tem reverso/ Que o direito tem o avesso/ Que o de graça tem seu preço/ Que a vida tem contrários/ E a saudade é um lugar/ Que só chega quem amou/ E o ódio é uma forma tão estranha de amar.” E para melhor compor a cena tragicômica que se avoluma a cada dia neste Brasil de 2019, aquele característico e ‘carinhoso’ gesto da arminha.

Paulo Linhares é professor e advogado.

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