Por Paulo Afonso Linhares
Uma das grandes decepções de setores do empresariado brasileiro que coadjuvaram o golpe de 1964, que apeou do poder o presidente João Goulart, foi descobrir que os protagonistas fardados, embora raivosos direitistas, eram empedernidos nacionalistas e fiéis defensores do Leviathan.
Claro, no começo o economista-mor Roberto Campos, jocosamente chamado de “Bob Fields” por sua indisfarçável americanofilia (aliás, avô do atual presidente do Banco Central), conseguiu impor uma agenda liberal muito ao gosto de Wall Street, entre 15 de abril de 1964 até 15 de março de 1967, quando o presidente marechal Castelo Branco foi substituído pelo marechal Arthur da Costa e Silva, da linha-dura militar, ultranacionalista e defensora de uma Estado forte e intervencionista.
Cerca de dois anos depois, esse mesmo segmento se firmou no poder ditatorial quando, em circunstâncias misteriosas, defenestrou do poder Costa e Silva e impediu que o seu vice, o civil Pedro Aleixo, o substituísse. Uma junta militar, composta por representantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, passou a governar o Brasil e logo a ordem constitucional desenhada na Carta de 1967 foi implodida com a ‘constitucionalização’ de instrumento de exceção – o Ato Institucional nº 5 – que somente teve como paralelo o esdrúxulo Poder Moderador da Constituição Imperial de 1824.
Com o governo Geisel, iniciado em 1974, teve início um novo ciclo econômico caracterizado pela retomada, noutras bases, do desenvolvimentismo dos governos antes de 1964, tendo como ideia-força a fortíssima presença estatal na estrutura de base da economia, sobretudo, nos setores de transportes, telecomunicações, energia elétrica e petróleo. E foi o momento de surgimento, na esteira da velha Petrobrás, das diversas outras ‘bras’, para espanto de liberais de vários matizes: Telebrás, Eletrobrás, Nuclebrás etc.
A propósito, conta-se que numa circunspecta reunião ministerial, Shigeaki Ueki, então poderoso ministro das Minas e Energia, sugeriu ao presidente Geisel a criação de um programa de aproveitamento de esterco na produção de energia a partir do biogás. Foi quando o poderoso ministro do Planejamento, Mário Henrique Simonsen, que não era um liberal, com aquela indefectível cara eterna de ressaca, embora genial economista e bem sucedido banqueiro, abalou a todos, sobretudo, o luterano Geisel, quando afirmou: “Criaremos a Bostobras. Perdoem-me a indiscrição, mas, se tivessem me dado a oportunidade, eu sugeriria um outro nome…” Pano rápido.
Bom, essa conversa comprida de resgate histórico cai como uma luva neste momento vivido pelo Brasil, na era bolsonaro. E ajuda a decodificar uma série de episódios recentes caracterizados por uma servil obediência aos interesses norte-americanos segundo a (ridícula) fórmula “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, a infame e gosmenta frase do embaixador Juracy Magalhães, nos anos iniciais da ditadura militar.
Nessa mesma linha, os maneios entreguistas do ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, corroborados pelo próprio presidente Bolsonaro no beija-mãos a Donald Trump, projetam ações que desfavorecem os interesses do Estado brasileiro, como é o caso da ingerência norte-americana no estratégico Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão, que deverá passar à condição de mero apêndice da National Aeronautics and Space Administration (NASA), a agência do governo federal dos Estados Unidos da América para pesquisa e desenvolvimento de tecnologias e programas de exploração espacial.
Um dos programas da NASA para os próximos anos, anunciado pelo próprio Trump, é o de recolher os 96 invólucros contendo fezes e outros dejetos deixados para trás por astronautas norte-americanos na Lua. Recolhê-los nada tem a ver com algum propósito ecológico de limpar o nosso satélite, mas, com a investigação sobre a sobrevivência de micro-organismos no estéril ambiente lunar. Sim, parece brincadeira, piada de mau gosto ou “bad joke”, na língua de Mark Twain, mas, uma missão espacial está sendo planejada para isso: trazer de volta essas dejeções todas deixados por astronautas das várias missões Apollo.
E o que tem a ver o Brasil com isso? É previsível que um foguete “limpa-bosta” parta da Base de Alcântara, no Maranhão, a qual o governo brasileiro colocou genericamente à disposição dos norte-americanos, inclusive, com assinatura de instrumento bilateral – chamado oficialmente de Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), que cria as condições para uma atuação conjunta EUA-Brasil no CLA – pelos presidentes de ambos os países, na recente visita de Bolsonaro a Washington. Em todos os sentidos, o custo será menor do que transformar o glamuroso Canaveral Cape num mal-afamado espaço porto recolhedor de dejetos. O Brasil, sim, poderá ‘abraçar’ a missão mal-cheirosa. Isto nem é algo concreto nem tampouco um reles “fake new”, mas, algo previsível de ocorrer e que tem tudo a ver com o nível de relação política estabelecido entre o governo Trump e o de Jair Bolsonaro: senhor e servo, respectivamente.
Nada de pensamentos menores e mesquinhos proto-esquerdóides: se é bom para os EUA certamente o será para o Brasil, já disse Juracy Magalhães. Tapemos o nariz e aceitemos o fado e o enfado. Enfim, a bosta dos astronautas ianques poderá ser, também, brasileira. Ei, e isto não se refere ao renitente complexo de vira-lata incrustado nas almas das camadas altas e médias da população brasileira, certo?
No limite, quem sabe se até não será possível a criação de mais uma estatal – na forma de joint venture de capital norte-americano e centavos brasileiros? – cujo sugestivo nome poderá ser “Bostobras Aeroespacial”, em homenagem à invectiva bem-humorada de Mário Henrique Simonsen. Afinal, é Brasil acima de tudo. Fecha o pano.
Paulo Linhares é professor e advogado
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