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Aborto do golpe

(Foto: publicação)

Por Olavo Hamilton

Bastou a Polícia Federal revelar um plano golpista, do qual teriam participado o então presidente Jair Bolsonaro e militares de alta patente, para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados aprovar, em 27 de novembro de 2024, por 35 votos a 15, a admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 164/12, de autoria dos ex-deputados Eduardo Cunha (RJ) e João Campos (GO), propondo que o direito à vida seja garantido desde a concepção.

Na prática, a modificação pretendida obsta qualquer possibilidade de legalização do aborto no país e até mesmo o método contraceptivo da pílula do dia seguinte.

Mas qual seria a relação entre a revelação do golpe de estado tentado e recrudescimento constitucional contra o aborto? É simples. Para Simone de Beauvoir, “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. É o caso. A filósofa francesa emite um alerta atemporal sobre a fragilidade dos direitos conquistados pelas mulheres, especialmente em contextos de impasses. Seu significado transcende sua época, enfatizando que nenhum avanço social é irrevogável e que a luta pela igualdade exige vigilância constante.

A fórmula, no caso da PEC 164/12, é simples: a extrema direita, fragilizada pelo escândalo da tentativa de golpe que envolveria matar os atuais presidente e vice-presidente da república, além de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), precisava de uma cortina de fumaça que animasse, mais uma vez, sua plateia. Buscaram o alvo mais fácil: os corpos femininos, cuja intimidade é vulnerabilizada há milênios.

É lamentável que não se produza um debate sério sobre o aborto no Brasil, envolvendo descriminalização, legalização e assistência do Sistema Único de Saúde (SUS). O que sempre está subjacente é a ‘necessidade’ de controle do direito reprodutivo das mulheres e de sua própia intimidade. O discurso moral e religioso oculta o real motivo. Mas não se trata de religião – aliás, se se tratasse, já seria muito grave, uma vez que o estado é laico.

Recentemente, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) apoiou um projeto de lei que dificultava o aborto em caso de gravidez proveniente de estupro. Não é possível enxergar ali clérigos bem intencionados defendendo a moral cristã. Tratava-se apenas de um bando de homens brancos que, do alto de seus privilégios, se arrogam no direito sobre os corpos femininos. Como lembra Frei Betto, “se homem engravidasse, o aborto seria sacramento”. Amém.

* Olavo Hamilton é Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Conselheiro Federal da OAB, Professor e Escritor.

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